terça-feira, 24 de abril de 2018

Proinfância entrega representação contra o Provimento 63/2017 da Corregedoria Nacional de Justiça


Na manhã desta terça-feira (24/4), o Promotor de Justiça Millen Castro (MPBA), em nome da Coordenação do Proinfância, realizou a entrega da representação dirigida à Procuradora-Geral da República, para ajuizamento de ação direta de inconstitucionalidade contra o Provimento nº 63, de 14 de novembro de 2017, editado pela Corregedoria Nacional de Justiça, que foi aprovada à unanimidade durante a Assembleia Geral que ocorreu no Rio de Janeiro, durante o V Congresso Nacional do Proinfância.

As razões da representação, assinadas por cinquenta e dois participantes do evento (texto abaixo), foram entregues em Brasília/DF ao Procurador de Justiça Nedens Ulisses (MPMG), Secretário de Relações Institucionais do CNMP, na presença do Presidente da CONAMP, Victor Hugo, da Promotora de Justiça Andrea Teixeira (MPES), Membro Auxiliar da Comissão da Infância e Juventude do CNMP, e da Promotora de Justiça Luciana Rocha, integrante da Coordenação do CAO Infância e Juventude do MPRJ.

Durante o Congresso também foi aprovado à unanimidade o seguinte enunciado sobre a matéria:

Enunciado n° 7 - O reconhecimento voluntário da paternidade ou da maternidade socioafetiva regulado pelos arts. 10 a 15 do Provimento nº 63/2017 da Corregedoria Nacional de Justiça é inconstitucional por violar o art. 1°, parágrafo único, o art. 2°, o art. 22, I, o art. 103-B, § 4°, I, e § 5º, o art. 127, “caput”, e o art. 227, “caput” e §§ 5° e 6°, da Constituição Federal.

Todos os enunciados do Fórum podem ser acessados clicando aqui.

REPRESENTAÇÃO POR INCONSTITUCIONALIDADE

Os participantes do V Congresso Nacional do Proinfância (Fórum Nacional dos Membros do Ministério Público da Infância e Adolescência) que subscrevem este documento apresentam à Assembleia Geral, com fundamento no art. 2º, I e V, do Regimento Interno, proposta de representação por inconstitucionalidade com base nos fundamentos jurídicos expostos a seguir.

Em novembro de 2017, houve ampla divulgação do Provimento nº 63, de 14 de novembro de 2017, editado pela Corregedoria Nacional de Justiça (Provimento 63/2017-CNJ), por meio do qual foram disciplinados, dentre outros temas, “o reconhecimento voluntário e a averbação da paternidade e maternidade socioafetiva”. Não há dúvida quanto à importância do reconhecimento jurídico de vínculos de filiação formados a partir de longa convivência, marcada por relações de amor, afeto, cuidado, que devem gerar reflexos no universo jurídico dos envolvidos. Existe sólida produção doutrinária e pacífica jurisprudência sustentando a viabilidade de alguém figurar como mãe ou pai de quem não é, biologicamente, sua filha ou seu filho. O próprio Supremo Tribunal Federal (RE 898060, Tribunal Pleno, j. 21/09/2016) decidiu, em sede de repercussão geral, ser possível coexistir dupla paternidade.

No entanto, mesmo no sistema previsto pelo revogado Código de Menores, no qual estavam expressamente elencadas hipóteses de delegação do pátrio poder e de adoção simples, a intervenção judicial homologatória era imprescindível, com prévia audiência do Ministério Público (art. 22, II), constando do art. 28 que “a adoção simples dependerá de autorização judicial, devendo o interessado indicar, no requerimento, os apelidos de família que usará o adotado, os quais, se deferido o pedido, constarão do alvará e da escritura, para averbação no registro de nascimento do menor” (destacado).

A reserva jurisdicional em matéria de adoção está prevista na Convenção das Nações Unidas sobre os Direitos da Criança, em vigor no Brasil por força do Decreto nº 99.710, de 21/11/1990, que prescreve em seu art. 21: “Os Estados Partes que reconhecem ou permitem o sistema de adoção atentarão para o fato de que a consideração primordial seja o interesse maior da criança. Dessa forma, atentarão para que: a) a adoção da criança seja autorizada apenas pelas autoridades competentes, as quais determinarão, consoante as leis e os procedimentos cabíveis e com base em todas as informações pertinentes e fidedignas, que a adoção é admissível em vista da situação jurídica da criança com relação a seus pais, parentes e representantes legais e que, caso solicitado, as pessoas interessadas tenham dado, com conhecimento de causa, seu consentimento à adoção, com base no assessoramento que possa ser necessário” (destaques acrescidos).

A Convenção Americana sobre Direitos Humanos, promulgada pelo Decreto nº 678, de 6/11/1992, ao regular o direito ao nome, no art. 18, dispõe que “Toda pessoa tem direito a um prenome e aos nomes de seus pais ou ao de um destes. A lei deve regular a forma de assegurar a todos esse direito, mediante nomes fictícios, se for necessário” (destacado). O regramento por meio de lei decorre da necessidade de que assuntos sensíveis como esse gozem da legitimidade democrática conferida por discussões e deliberações do Poder Legislativo. Nessa linha, o texto constitucional brasileiro foi claro ao fixar a competência privativa da União para legislar sobre direito civil (art. 22, I, da Constituição Federal).

Constam disposições normativas sobre o procedimento de reconhecimento de filhos no Código Civil (art. 1.607 e seguintes) e na Lei nº 8.560/92, esta prevendo a atuação do oficial de registro civil unicamente na comunicação necessária à averiguação oficiosa pelo Ministério Público (art. 2º). O legislador silencia quanto a efeitos jurídicos imediatos do ato de reconhecimento voluntário de paternidade socioafetiva de criança ou adolescente, o que impõe a propositura de ação para que o vínculo seja judicialmente provado e declarado, com atuação obrigatória do Ministério Público (art. 127, caput, da Constituição Federal e art. 698 do Código de Processo Civil), para que, a partir disso, incida a regra de isonomia do art. 227, § 6º, da Constituição Federal, assim redigido: “Os filhos, havidos ou não da relação do casamento, ou por adoção, terão os mesmos direitos e qualificações, proibidas quaisquer designações discriminatórias relativas à filiação.

A adoção, por sua vez, enquanto procedimento também apto à formalização do vínculo de filiação socioafetiva, sempre com a assistência do “Poder Público, na forma da lei” (art. 227, § 5º, da Constituição Federal), quando disser respeito a criança ou a adolescente, nos termos do art. 1.618 do Código Civil, “será deferida na forma prevista pela Lei nº 8.069, de 13 de julho de 1990” (Redação dada pela Lei nº 12.010/2009). O art. 47 do Estatuto da Criança e do Adolescente, nesse sentido, enuncia que “o vínculo da adoção constitui-se por sentença judicial, que será inscrita no registro civil mediante mandado do qual não se fornecerá certidão” (Destacado).

A sentença judicial pressupõe intervenção do Ministério Público, sob pena de nulidade, considerando a regra do art. 204 do Estatuto, e, mais importante, a atuação de equipe interprofissional, responsável por “fornecer subsídios por escrito, mediante laudos, ou verbalmente, na audiência, e bem assim desenvolver trabalhos de aconselhamento, orientação, encaminhamento, prevenção e outros, tudo sob a imediata subordinação à autoridade judiciária, assegurada a livre manifestação do ponto de vista técnico” (art. 151 do Estatuto). Uma vez que ao Judiciário é levada questão que envolve aspectos intimamente ligadas a áreas do saber diversas da jurídica, como a psicologia, a intervenção de especialistas é pressuposto de uma boa decisão.

Segundo Evani da Silva e Sonia Rovinski, “discutir tais relações socioafetivas, identificando as representações familiares da criança, é algo muito complexo para se submeter a uma avaliação psicológica, pois envolve não só́ as representações da própria criança em relação aos adultos, mas também desses adultos em relação à criança”. (A família no judiciário. In: Psicologia de família: teoria, avaliação e intervenções. Porto Alegre: Artmed, 2012, p. 212) Conclui-se que, a avaliação que antecede o reconhecimento do vínculo socioafetivo, mais do que técnica, deve ser ampla e multidisciplinar.

Para Katia Maciel, “o estabelecimento do vínculo socioafetivo deve restar plenamente evidenciado, notadamente em se tratando de criança e de adolescente, para que a identidade dos pequenos não seja mutilada e fragilizada [...]. Hodiernamente, ainda, a responsabilidade da ‘referência parental’ estabelecida pelo Estado-juiz tem-se posto mais cuidadosa ao apreciar as lides de pais e mães que pretendem conceder às crianças e aos adolescentes a dupla paternidade e a dupla maternidade” (Curso de direito da criança e do adolescente: aspectos teóricos e práticos. 9. ed. São Paulo: Saraiva, 2016, p. 177-178).

Destacando a tônica do legítimo interesse da criança e do adolescente no âmbito da socioafetividade, Christiano Cassettari afirma que “ao padrasto é conferida legitimidade ativa e interesse de agir para postular a destituição do poder familiar do pai biológico da criança. Entretanto, todas as circunstâncias deverão ser analisadas detidamente no curso do processo, com a necessária instrução probatória e amplo contraditório, determinando-se, outrossim, a realização de estudo social ou, se possível, de perícia por equipe interprofissional [...]” (Multiparentalidade e parentalidade socioafetiva: efeitos jurídicos. 3. ed. São Paulo: Atlas, 2017, p. 44)

O Corregedor Nacional de Justiça, ao editar o Provimento 63/2017-CNJ, no uso da competência prevista no art. 8º, X, do Regimento Interno do Conselho Nacional de Justiça, de “expedir Recomendações, Provimentos, Instruções, Orientações e outros atos normativos destinados ao aperfeiçoamento das atividades dos órgãos do Poder Judiciário e de seus serviços auxiliares e dos serviços notariais”, disciplinou o “reconhecimento voluntário da paternidade ou da maternidade socioafetiva” (art. 10), a ser processado por oficiais de registro civil de pessoas naturais, e incluiu previsão de multiparentalidade reconhecida extrajudicialmente, ao permitir que o registro tenha até dois pais e duas mães (art. 14).

Ausente dispositivo legal que ampare o ato regulamentar, tal autoridade fez referência, nos considerandos, ao precedente do Supremo Tribunal Federal (RE 898060, Tribunal Pleno, j. 21/09/2016) que se limitou a declarar a possibilidade de “coexistência da dupla paternidade: a socioafetiva de um lado; e, de outro, a biológica. […] concomitante, posterior ou anterior” (Voto do Ministro Ricardo Lewandowski), não constando dos debates menção à licitude da declaração de paternidade por quem sabe não possuir vínculo biológico (adoção à brasileira). Observe-se, quanto a esse tema, que nos considerandos que fundamentam o Provimento 63/2017-CNJ, há referência a “adoção iniciada antes do registro de nascimento”.

Segundo Jorge Fujita, “adoção à brasileira é a que consiste no reconhecimento registral de determinada pessoa como sendo filho de outros que não se traduzem como seus pais biológicos, sem obedecer aos trâmites legais, caracterizando um procedimento irregular, tipificador de crime de parto suposto, constante no art. 242, do Código Penal” (Filiação. 2. ed. São Paulo: Atlas, 2011, p. 79). No mesmo sentido, Belmiro Pedro Welter afirma que a adoção à brasileira “se dá com a declaração falsa e consciente de paternidade e maternidade por quem não é o genitor(a) da criança, sem a observância das exigências legais para a adoção. Também tipifica a adoção à brasileira o reconhecimento espontâneo de paternidade por quem sabe não ser o pai biológico” (Teoria tridimensional no Direito de Família: reconhecimento de todos os direitos das filiações genética e socioafetiva. Revista do Ministério Público do RS, Porto Alegre, n. 62, abr. 2009, p. 12). Já Katia Maciel enfatiza que “a natureza jurídica do reconhecimento judicial ou do voluntário é a de um ato declaratório porque não cria a paternidade – pois já́ existia, antes da declaração judicial – e produz efeitos ex tunc, retroagindo ao dia do nascimento” (Curso de direito da criança e do adolescente: aspectos teóricos e práticos. 9. ed. São Paulo: Saraiva, 2016, p. 164).

Christiano Cassettari, em trabalho acadêmico que analisa e debate o reconhecimento voluntário de paternidade ou maternidade socioafetiva, ressalva que isso só deve ocorrer “no caso de o filho não ter pai e/ou mãe no assento do nascimento, pois, caso contrário, seria um caso de ‘adoção à brasileira’, ato ilícito e repudiado pelo sistema, e que não pode ser defendido e muito menos estimulado pela doutrina” (Multiparentalidade e parentalidade socioafetiva: efeitos jurídicos. 3. ed. São Paulo: Atlas, 2017, p. 87, destacado). Nem essa mínima cautela foi observada pelo Provimento 63/2017-CNJ, que ostenta caráter normativo primário, por inovar o ordenamento jurídico dispondo sobre polêmica questão de direito civil.

Acrescentado pela Emenda Constitucional nº 45/2004, o art. 103-B, § 4º, I, da Constituição Federal, assim está redigido: “Art. 103-B. [...] § 4º Compete ao Conselho o controle da atuação administrativa e financeira do Poder Judiciário e do cumprimento dos deveres funcionais dos juízes, cabendo-lhe, além de outras atribuições que lhe forem conferidas pelo Estatuto da Magistratura: I - zelar pela autonomia do Poder Judiciário e pelo cumprimento do Estatuto da Magistratura, podendo expedir atos regulamentares, no âmbito de sua competência, ou recomendar providências”.

Ao analisar a amplitude do Poder Normativo do Conselho Nacional de Justiça, Morgana Richa sustenta que tal órgão “tem competência para editar diplomas normativos primários, fundamentados em preceitos da própria Constituição Federal, ainda que não exista lei formal disciplinando a matéria. [...] Esse poder normativo, contudo, não é soberano nem ilimitado, mas está associado às atribuições constitucionais do CNJ. A prerrogativa de editar atos normativos primários deve ser exercida somente no âmbito de sua competência (controle administrativo, financeiro e funcional do Poder Judiciário) e observar os preceitos da Constituição: onde esta proíbe, não é dado ao CNJ autorizar; onde autoriza, não lhe é permitido negar. [...] Direitos fundamentais que não se relacionem com a condução administrativa, financeira e funcional do organismo judicial não podem ser tocados pelo CNJ. [...] A exigência constitucional de reserva de lei, ainda que relativa a tema pertinente ao Poder Judiciário, afasta a competência normativa do Conselho e remete ao Poder Legislativo a disciplina da matéria. Se o constituinte originário ou reformador foi explícito em reservar à lei formal a disciplina de determinado tema (sinalizando que ele deve ser normatizado pelo Parlamento), está o CNJ impedido de editar ato normativo sobre a matéria” (Conselho Nacional de Justiça: fundamentos, processo e gestão. São Paulo: Saraiva, 2016, p. 284-285, destaques acrescidos).

De forma mais objetiva, Ilton Robl Filho indica três limitações ao exercício do poder regulamentar do Conselho: “(a) estabelecer novos direitos e deveres, (b) criar regras gerais e abstratas e (c) restringir direitos fundamentais. [...] Esse poder regulamentar possui uma função parecida com as leis medidas, devendo o CNJ exercer esse poder no âmbito de sua competência (atuações financeiras e orçamentárias, cumprimento dos deveres judiciais e outras competências postas na Constituição e no Estatuto da Magistratura)” (Conselho Nacional de Justiça: Estado democrático de direito e accountability. São Paulo: Saraiva, 2013, p. 269, destacado).

Tal questão foi inicialmente observada pelo Ministro João Otávio de Noronha, conforme trecho da decisão proferida nos autos Pedido de Providências nº 0002653-77.2015.2.00.0000, quando assim se manifestou o Corregedor Nacional de Justiça: “temerário seria se este Conselho Nacional de Justiça reconhecesse a possibilidade de registro em cartório de múltiplos vínculos de filiação quando a discussão ainda não se encontra madura no âmbito do Poder Judiciário e inexiste norma legal que autorize o múltiplo registro de pais no assento de nascimento. Extrapolaria este Conselho as suas atribuições previstas na Constituição Federal, no seu Regimento Interno e no Regulamento da Corregedoria Nacional de Justiça, além de violar frontalmente a separação entre os Poderes da Federação”. (Documento nº 17030911342410300000002058078, destacado, disponível em <https://www.cnj.jus.br:443/pjecnj/Processo/ConsultaDocumento/listView.seam>).

As atribuições constitucionais do Ministro-Corregedor, por sua vez, não incluem a edição de norma jurídica de caráter primário, já que os incisos do art. 103-B, § 5º, abrangem – (a) receber as reclamações e denúncias, de qualquer interessado, relativas aos magistrados e aos serviços judiciários; (b) exercer funções executivas do Conselho, de inspeção e de correição geral; e (c) requisitar e designar magistrados, delegando-lhes atribuições, e requisitar servidores de juízos ou tribunais, inclusive nos Estados, Distrito Federal e Territórios.

Mesmo que não se tratasse de ato monocrático, editado com base em atribuição regulamentar de um dos membros do Conselho Nacional de Justiça, mas de resolução do colegiado, elaborada com base no dispositivo constitucional antes mencionado e seguindo o procedimento previsto no art. 102 do seu Regimento Interno, ainda estaria presente o vício da inconstitucionalidade, decorrente do ingresso, por instância administrativa, no campo normativo reservado ao Congresso Nacional (art. 22, I, da Constituição Federal).

Necessário, além da exposição do vício formal do Provimento 63/2017-CNJ, chamar atenção para a simplificação excessiva de um procedimento extremamente complexo do ponto de vista técnico, ao exigir apenas a conferência de poucos documentos e a manifestação de vontade dos envolvidos, permitindo que no mesmo dia em que se decida pela constituição do vínculo jurídico de filiação os interessados consigam concluir o procedimento. Comparando tal modelo simplificado com os requisitos necessários ao registro de um simples projeto de desmembramento de imóvel, inevitável concluir pelo equívoco do modelo procedimental traçado pela Corregedoria Nacional de Justiça.

O art. 11 do Provimento 63/2017-CNJ exige unicamente: (a) exibição de documento oficial de identificação com foto do requerente e da certidão de nascimento do filho; (b) minuciosa verificação da identidade do requerente, mediante coleta, em termo próprio, por escrito particular, conforme modelo, de sua qualificação e assinatura, além da “rigorosa conferência” dos documentos pessoais; (c) colheita da assinatura do pai e da mãe do reconhecido, caso este seja menor; (d) se o filho for maior de doze anos, o consentimento deste; (e) coleta da anuência tanto do pai quanto da mãe e do filho maior de doze anos deverá ser feita pessoalmente perante o oficial de registro civil das pessoas naturais ou escrevente autorizado. Com a ausência de participação dos profissionais das outras áreas do conhecimento, como psicologia, assistência social e educação, é muito difícil ao oficial formar, a partir de base empírica, a convicção necessária à fundamentação da recusa decorrente da “dúvida sobre a configuração do estado de posse de filho”, hipótese que leva à remessa do feito ao juiz competente (art. 12 do Provimento 63/2017-CNJ).

O Código de Normas e Procedimentos dos Serviços Notariais e de Registro do Estado da Bahia, recentemente atualizado para incorporar, no seu art. 645-A, os dispositivos editados no âmbito da Corregedoria Nacional de Justiça, regula a submissão de projetos de desmembramento de imóveis ao Registro Imobiliário e exige que o pedido seja acompanhado da seguinte documentação: (a) título de propriedade do imóvel ou certidão da matrícula; (b) histórico dos títulos de propriedade do imóvel, abrangendo os últimos 20 (vinte) anos, acompanhado dos respectivos comprovantes; (c) certidões negativas de tributos federais, estaduais e municipais incidentes sobre o imóvel; de ações reais referentes ao imóvel, pelo período de 10 (dez) anos; de ações penais com respeito ao crime contra o patrimônio e contra a Administração Pública. (d) certidões dos Cartórios de Protestos de Títulos, em nome do loteador, pelo período de 10 (dez) anos; de ações pessoais relativas ao loteador, pelo período de 10 (dez) anos; de ônus reais relativos ao imóvel; de ações penais contra o loteador, pelo período de 10 (dez) anos; da Secretaria do Patrimônio da União, se tratar de terreno de Marinha; (e) cópia do ato de aprovação do loteamento e comprovante do termo de verificação pela Prefeitura Municipal, da execução das obras exigidas por legislação municipal, que incluirão, no mínimo, a execução das vias de circulação do loteamento, demarcação dos lotes, quadras e logradouros e das obras de escoamento das águas pluviais ou da aprovação de um cronograma, com a duração máxima de quatro anos, acompanhado de competente instrumento de garantia para a execução das obras; (f) exemplar do contrato-padrão de promessa de venda ou de cessão ou de promessa de cessão, do qual constarão, obrigatoriamente, as indicações previstas no art. 26, da Lei nº 6.766/1979; (g) declaração do cônjuge do requerente de que consente no registro do loteamento; (h) aprovação da Gerência do Patrimônio da União, quando se tratar de terreno de Marinha (art. 174 do Provimento Conjunto nº 009/2013-CGJ/CCI, DJe 30/1/2018).

Sendo o caso de desmembramento de imóveis rurais, a Lei de Registros Públicos exige “memorial descritivo, assinado por profissional habilitado e com a devida Anotação de Responsabilidade Técnica – ART, contendo as coordenadas dos vértices definidores dos limites dos imóveis rurais, geo-referenciadas ao Sistema Geodésico Brasileiro e com precisão posicional a ser fixada pelo INCRA” (art. 176, § 3º). Ou seja, não pode o oficial do registro de imóveis fazer constar nos assentos informação que não esteja respaldada por manifestação técnica de profissional especializado. Mas o de registro civil das pessoas naturais pode executar o serviço de inclusão de até dois pais e duas mães, assim constituindo situação jurídica determinante para o desenvolvimento de criança ou adolescente, apenas ouvindo as pessoas que assim o requerem. Se danos decorrerem dessa inclusão, caberá ao prejudicado provar a culpa ou o dolo do serventuário, considerando a recente alteração da Lei nº 8.935/1994, na parte em que dispõe sobre a responsabilidade civil e criminal dos notários, dos oficiais de registro e de seus prepostos, prevista no art. 236, § 1º, da Constituição Federal, que era objetiva até a entrada em vigor da Lei nº 13.286/2016, em 11/5/2016, que alterou o art. 22 da referida norma, redigido originalmente nos seguintes termos: “Art. 22. Os notários e oficiais de registro responderão pelos danos que eles e seus prepostos causem a terceiros, na prática de atos próprios da serventia, assegurado aos primeiros direito de regresso no caso de dolo ou culpa dos prepostos”.

A maior preocupação com a higidez de títulos de propriedade imobiliária do que com a situação existencial de crianças e adolescentes representa sinal claro de que ainda se vive, no Brasil, uma realidade marcada pelo patrimonialismo, herança de um passado colonial, com longo histórico de violações sistemáticas e institucionalizadas a direitos humanos. O Provimento 63/2017-CNJ não atende a parâmetros mínimos de cautela frente à situação de crianças e adolescentes que podem ser vítimas de adoção ilegal, destinada muitas vezes à exploração sexual infantojuvenil, ou de abandono posterior por pessoas que, no calor da emoção, decidam adotar à brasileira e se arrependam logo em seguida, na primeira crise que venha a afetar o relacionamento com o pai ou a mãe biológica da pessoa em desenvolvimento.

Para prevenir esses e outros danos é que o Legislador dispôs sobre o rígido controle do processo judicial de adoção, exigindo prévio cadastramento e constante orientação dos interessados, estudos multidisciplinares, participação do Ministério Público, intervenção de defesa técnica, dentre outras cautelas procedimentais. No âmbito das varas de família, conforme previsão do art. 694 do Código de Processo Civil, o juiz também deve “dispor do auxílio de profissionais de outras áreas de conhecimento” e as partes têm direito a receber “atendimento multidisciplinar”.

Buscando evitar que atos normativos monocráticos venham a exercer, em caráter abstrato, como ocorria em passado recente, forte influência sobre a vida das pessoas, é que a Constituição Federal de 1988 fixou a reserva de lei em matéria de direito civil (art. 22, I), baseada no valor da deliberação democrática e no importante papel a ser desempenhado por centenas de representantes eleitos nas discussões que antecedem o amadurecimento de questões fundamentais para a vida do cidadão e a sua inclusão na ordem jurídica de forma inovadora.

Considerando a violação de dispositivos da Constituição Federal, requerem à Assembleia Geral do Proinfância que, nos termos do art. 10, I, do Regimento Interno, submeta a matéria à Procuradora-Geral da República, por meio de representação para ajuizamento de ação direta de inconstitucionalidade com pedido liminar.