Pedro Hartung
Estamos vivendo tempos difíceis. Seja qual for sua posição político-ideológico-partidária, nuvens acinzentadas de palavras ríspidas, emoções turbulentas e comportamentos enraivecidos se avolumam sobre nossas cabeças. O afeto e o respeito caminham maltrapilhos pelas ruas de nossas cidades, famílias ou grupos de Whatsapp, buscando um canto, pequenino que seja, para se alojarem.
Em tempos de crise, dizem os velhos sábios, devemos parar, respirar e reavaliar o percurso que fizemos até aqui, buscando nas nossas histórias e memórias os caminhos atravessados, as decisões tomadas e ainda, as oportunidades de escolhas que temos em nossa frente, para evitar os erros já cometidos no passado.
Talvez não tenha momento mais oportuno do que exatamente nesta sexta-feira anterior a uma das eleições mais importantes da história do Brasil, a Constituição Federal de 1988, documento base do Estado democrático pós ditadura civil-militar, completa 30 anos de sua promulgação. Uma intensa caminhada, ainda que muitas vezes errante ou paradoxal, com acertadas e importantes travessias na garantia das liberdades e direitos sociais de todos os cidadãos brasileiros.
Quando toda a população brasileira foi convocada a escrever as linhas pelas quais nosso novo pacto social foi firmado, uma intensa mobilização de diferentes grupos, temas e causas foi feita para que o novo texto expressasse as demandas e anseios de uma sociedade que experimentava sonhar novamente, mesmo após ter sorvido o cálice amargo da violência e da tortura sistemáticas de agentes estatais contra aqueles que ousavam discordar ou apenas questionar.
Novos sonhos para todos e também para as crianças e adolescentes. Inclusive, foram elas, junto a diversas organizações da sociedade civil, que se organizaram no movimento “Criança, Prioridade Nacional” pela emenda popular com maior apoio registrado à época, quase 2 milhões de assinaturas, para que seus interesses e Direitos fossem cuidados de forma especial pelos constituintes. Nascia, também há 30 anos, o Artigo 227 da Constituição Federal.
Como pedra angular de um novo mundo, o Artigo 227 fundou a obrigação para que o interesse de crianças e adolescentes seja colocado antes de qualquer outro em todas as decisões e preocupações do Estado e seus Poderes, da Sociedade e suas instituições e de todas as formas de famílias e suas comunidades, em uma responsabilidade de cuidado compartilhada e solidária.
Assim, inaugurou-se um novo tempo, no qual é dever, legal e moral, de todos nós, garantir com Absoluta Prioridade os direitos de todas as crianças e adolescentes, inclusive os filhos dos outros e os filhos de ninguém, colocando-os a salvo de toda forma de negligência, discriminação, exploração, violência, crueldade e opressão.
A força desta regra constitucional subsiste à aplicação de qualquer método de interpretação legal, devendo ser efetivado independentemente das circunstâncias, com eficácia plena e aplicabilidade imediata. Não está e não pode estar sujeita ao sabor ou dissabor dos ventos ideológicos, partidários, sociais ou econômicos. Ou seja, o melhor interesse da criança deve estar, por força constitucional, sempre em primeiro lugar.
Em primeiro lugar no orçamento público; em primeiro lugar nas políticas públicas; em primeiro lugar na elaboração das novas leis; em primeiro lugar nas decisões e políticas judiciais; em primeiro lugar nas escolas e hospitais; em primeiro lugar nos cuidados familiares; e em primeiro lugar nessas eleições.
Amanhã vai ser outro e um novo dia. O dia em que podemos escolher com responsabilidade e conhecimento histórico do que já conquistamos como sociedade brasileira, reafirmando nosso compromisso com os valores democráticos e republicanos da Constituição de 1988; o dia que devemos garantir, de uma vez por todas, absoluta prioridade a crianças, adolescentes e seus direitos, efetivando esse projeto de país estratégico e benéfico a todos nós.
As crianças são seres de dois mundos: do presente e do futuro.
Respiremos. Reflitamos. Diante desta crise, o Artigo 227 da Constituição Federal de 1988 é um farol reluzente a nos guiar nesses turbulentos e perigosos mares.