Por Alexandra Beurlen
Não é de hoje que o conceito de direitos humanos é mal interpretado e sua defesa percebida como apoio aos “bandidos” e à impunidade. O debate é recorrente a cada crime bárbaro noticiado e a cada decisão judicial garantista proferida em casos que chamam atenção da opinião pública.
Soube que uma mulher teve mais de 50% do corpo queimado, por um vizinho, porque, segundo outros vizinhos, resistiu a seus encantos. Grande “ironia”: o marido da vítima, ao receber a notícia da violência, tentou matar o agressor e foi preso.
A síntese, quando tomei conhecimento: a vítima das queimaduras no hospital, desfigurada, apta a prestar algum tipo de depoimento, lá mesmo, sem previsão de alta e com grande risco de morte. Os dois homens presos.
Merece defesa o incendiário? E o marido? Quem você defenderia (ou não)? Por quê?
Se ganhei sua atenção até aqui, gostaria que fizesse um esforço para ler o texto até o fim. Vou fazer uma pequena digressão sobre uma característica dos direitos humanos para que possamos tentar chegar a um denominador comum.
Quando comecei a estudar o tema, chamaram minha atenção duas de suas principais características: interdependência[1] e universalidade. De formação moral e religiosa Cristã, nunca tive dificuldade em entender a linguagem dos direitos humanos, parece-me, em muitos aspectos, com o Novo Testamento e as pregações do Cristo, permeadas pelo amor a todas as pessoas (universal).
Dizer que um direito é universal é reconhecer que pertence a TODOS os seres humanos, pela sua condição humana apenas, sem qualquer distinção ou exceção. Na construção histórica para alcançar o que hoje chamamos direitos humanos, observou-se que a universalidade é sua essência.
Nesse processo, não se estava pensando no vizinho que tocou fogo na mulher; em alguém que mata outrem para roubar; em quem mata criança a caminho da escola; menos ainda em algum político corrupto; e, jamais, na construção de mecanismos de impunidade deles todos.
O desenvolvimento teórico do tema teve por objetivo, inclusive, a proteção dos inocentes e a promoção da Justiça, através da construção da garantia de um julgamento justo, por terceiro desinteressado (juiz) que ouça os argumentos de defesa e de acusação (com o mesmo cuidado e atenção) e, só então, formando sua convicção, julgue.[2]
Motivando-se pela sensação de impunidade que toma conta do país, todos os dias surgem movimentos e propostas que manipulam informações sobre o que seria a defesa de direitos humanos, tentam retirar desses direitos o seu âmago, a universalidade, e até mesmo pretendem atribuir sua titularidade aos que denominam “humanos direitos”.
Outras vezes, sob o pretexto de defesa dos “humanos direitos”, invertendo a lógica da própria existência do Estado, defendem a necessidade de o Estado ser mais enérgico e duro, mesmo que para tanto, viole direitos de “humanos NÃO direitos”.
Um problema que decorre desta proposta é definir, a priori, se aquele indivíduo é ou não “humano direito” e se deve ou não ter seus direitos humanos respeitados. Outro é identificar a quem seria atribuída essa missão: À sociedade? Ao Estado, através da polícia? À mídia refletida na opinião pública (ou vice-versa)?
Em uma reação passional comum em casos como o relatado, o vizinho piromaníaco estaria condenado à desumanidade. Não se haveria de discutir, em nenhum processo, sua responsabilidade e aplicar-lhe a consequência jurídica que o ordenamento prevê para condutas como a sua[3]. Na verdade, seria eliminado da face da terra, de preferência com bala paga por sua família, ou com outros requintes de crueldade que a mente humana é bem capaz de idealizar.
Para entender um pouco melhor a importância da universalidade dos direitos humanos, lembro que, a depender de quem esteja com o poder de dizer quem é o “humano direito”, o nobre leitor pode vir a não se encaixar no perfil imaginado, seja por ser uma mulher e não se entender adequado um “não” como resposta a uma “cantada”; seja por ser proprietário de algo; seja por ser uma criança negra e pobre a caminho da escola; seja por protestar contra a corrupção.
Se ainda persiste comigo, continuaremos a fundamentar a universalidade mudando um pouco o foco do ser humano a ser protegido, partindo do pressuposto de que, em pleno século XXI, não há quem defenda a escravidão e vamos todos falar a mesma língua, neste aspecto.
No berço da democracia, onde se votava em praça pública o destino da Grécia Antiga e se refletia sobre humanidade, política, cidadania e outros tantos conceitos filosóficos e científicos complexos, havia escravos.
Historicamente, habituados a nos dividirmos em categorias, adotamos estratégias para “desalmar” outros seres humanos, que passam a ser considerados inferiores, e justificar sua dominação, seu desprezo, e, até mesmo, seu extermínio. Foi assim com as colonizações, com a escravidão, com os negros libertos, com os índios, com as mulheres, com as crianças, com os deficientes, com os homossexuais...
Na velha linha do “manda quem pode, obedece quem tem juízo” o “bandido desalmado” de determinado momento histórico pode ser desde o judeu, o negro e o homossexual, como na Alemanha Nazista, ou o estudante que decide ter em casa livros censurados, na última ditadura brasileira. Esse formato de subjugação de “categorias inferiores” de seres humanos é comum em ditaduras[4] de qualquer matiz ideológica.
Após o horror provocado pelo Estado Nazista, decidiu-se que não era admissível à humanidade submeter-se àquilo novamente. Não era humano. Alguns povos do mundo começaram a se reunir para estabelecer um número mínimo de direitos invioláveis pertencentes a TODOS[5].
A ninguém mais seria dada a capacidade de dizer quem tem ou não direito à vida, à integridade física e psíquica, à liberdade, à dignidade humana, ao devido processo legal, à alimentação adequada, à água, à saúde, à educação, ao meio ambiente equilibrado, entre outros. Definiu-se que TODOS têm direito a esse núcleo mínimo de direitos a que chamou “direitos humanos”.
Merece destaque, no cenário americano, atual a situação da Bolívia. Em uma espécie de “autorização para matar”, a autoproclamada presidente Jeanine Añez baixou um decreto que retira dos integrantes das Forças Armadas a responsabilidade penal “no cumprimento de suas funções Constitucionais”, podendo usar “todos os recursos disponíveis” para tanto.[6] Em 17.11.2019, já haviam sido contabilizados, entre cidadãos que se manifestavam, 23 mortos e 715 feridos.[7] A “presidente” deu aos militares bolivianos o poder de decidir que cidadãos merecem ter seu direito humano à vida respeitado, em evidente violação à Declaração Universal dos Direitos Humanos.
O Estado brasileiro, através da subscrição dos Tratados Internacionais e da própria Constituição Federal de 1988, estabelece a prevalência dos direitos humanos. É papel do Estado brasileiro, então, defendê-los, respeitá-los, protegê-los, promovê-los e, nunca violá-los. Entre os direitos humanos está a liberdade de expressão, a qual garante até mesmo a defesa pública e acalorada da ideia de que os direitos humanos devem deixar de ser universais, em um discurso de retrocesso e perigoso.
Não pode haver exceções e seletividade na proteção dos direitos humanos e é papel do Estado, garantida a liberdade de expressão, defender a universalidade dos direitos humanos. Não podem os representantes do Estado brasileiro agir de modo diferente. E é por isso que, quando o desrespeito a tais direitos parte de representante do Estado, temos que gritar mais alto e a responsabilização dos agentes públicos tem que ser exemplar![8]
Sem poder deixar de mencionar rapidamente a interdependência intrínseca aos direitos humanos, é indispensável registrar que não é possível a um tê-los reconhecidos e seguros quando outrem tiver os seus lesados. Mais: omitir-se diante dessa violação é admitir que uma guilhotina seja colocada sobre a própria cabeça.
“Um dia, vieram e levaram meu vizinho, que era judeu. Como não sou judeu, não me incomodei. No dia seguinte, vieram e levaram meu outro vizinho, que era comunista. Como não sou comunista, não me incomodei. No terceiro dia, vieram e levaram meu vizinho católico. Como não sou católico, não me incomodei. No quarto dia, vieram e me levaram. Já não havia mais ninguém para reclamar”[9]
Defender direitos humanos é defender a humanidade. É defender a si mesmo.
[1]Que vai merecer atenção em outro texto.
[2]Ao contrário dos inúmeros exemplos de processos inquisitórios cheios de superstições, manipulações e tantas outras características nocivas que a história do direito penal mostra, buscava-se o que hoje conhecemos como “devido processo legal”.
[3]Se a pena prevista em lei é suficiente, se penas mais severas, prisões perpétuas ou pena de morte asseguram redução da criminalidade; se os presídios recuperam; e qual deve ser o modelo de encarceramento são temas importantes, porém não os abordarei neste contexto.
[4]A garantia de direitos humanos é intimamente relacionada com a democracia.
[5]Declaração Universal dos Direitos Humanos, 1948.
[6]https://internacional.estadão.com.br/noticias/geral,governo-da-bolivia-isenta-militares-de-responsabilidade-penal,70003092087 (acesso em 20.11.2019).
[7]https://noticias.uol.com.br/internacioanl/ultimas-noticias/2019/11/17/bolivia-tem-23-mortes-em-mes-de-crise-cidh-critica-decreto-pro-militares.htm (acesso em 20.11.2019)
[8]Há diferença clara entre um cidadão comum e um policial que matam; entre um vizinho e um Promotor de Justiça que perseguem; entre um popular e um Magistrado que decidem com base em interesses pessoais; entre o menino de rua que furta e o político corrupto que lesa o erário. Todos estão errados e devem ser punidos, mas os danos gerados pelos erros dos representantes do Estado são infinitamente maiores, por isso a necessidade de um esforço coletivo para que não volte a ocorrer. Isso não significa, de forma alguma, errar novamente, violando os direitos desses “criminosos desalmados”.
[9]Martin Niemoller, teólogo protestante alemão.
Alexandra Beurlen é promotora de Justiça do MP-AL e Coordenadora do Proinfância.