Julio Alfredo de Almeida*
Durante o domingo passado, ainda em viagem familiar de retorno da região sul, passei a receber algumas mensagens e vídeos noticiando que no Santander Cultural ocorria uma exposição de obras que continham pedofilia, zoerastia e ofensas aos símbolos religiosos.
Na segunda feira, após trabalhar em vários inquéritos policiais com presos – por pedofilia – , realizar atendimentos agendados e reunião com produtora de um filme institucional de combate ao abuso sexual, modifiquei a agenda e, juntamente com a Coordenadora do CAOIJEFAM, fui até a exposição.
Entendi que era meu dever conhecer e, se fosse o caso, intervir de forma imediata, eis que atuo como titular e substituto respectivamente da 11º e 10º Promotoria de Justiça da Infância Juventude/PoA, as quais me conferem atribuição para praticamente todos os crimes sexuais e proteção sexual infanto-juvenil de Porto Alegre.
Chegando ao local, fomos recebidos por parte da diretoria do banco, que nos informou sobre o cancelamento da exposição e que os recursos captados por incentivos fiscais seriam devolvidos. O coordenador do espaço elencou os procedimentos e realizei a arrecadação do catálogo da exposição “QUEERMUSEU, cartografias da diferença na arte brasileira”, folders e caderno do professor, da lista das escolas visitantes e, com a Colega Denise, passei a inspecionar o acervo em busca do dito crime de pedofilia.
Diferente de todos os que escreveram e emitiram opinião sobre o assunto, inclusive colegas, não devo externar opinião sobre a qualidade, ideologia, estética ou moralidade do acervo, sob pena de contaminar com as minhas convicções pessoais a análise técnica sobre o material inspecionado.
Vamos lá! Meus dezoito anos de atuação e especialização pela FMP em infância e juventude, acrescidos de dois anos e meio com atribuição em Proteção Criminal na área da violência sexual – centenas de denúncias por ano -, somados aos vinte anos de atuação e mestrado nos Estados Unidos na área de proteção contra violência sexual da Colega Denise Villela – e é em razão dessa qualificação que foi chamada a Coordenar o CAOIJEFAM - certamente nos credenciam para captar o que seja crime de pedofilia constante de imagem, mensagem ou vídeo.
Não encontramos nas obras – ou seja já como queiram classificar -, qualquer imagem de criança/adolescente que envolva criança ou adolescente em atividades sexuais explícitas, reais ou simuladas, ou exibição dos órgãos genitais de uma criança ou adolescente para fins primordialmente sexuais, conforme preceitua o art. 241-E, do ECA. Aliás, única definição do que seja sexo explícito e pornografia em toda legislação brasileira.
Os quadros indicados como imagem de pedofilia, apesar de neles constar frases sobre “criança viada”, as quais na intenção do autor significariam o sofrimento da criança “conceituada”, mas que a um observador pode significar, por exemplo, sentimento de desprezo para com o infante, não continham quaisquer das cenas ou imagens do art. 241-E do ECA; portanto, não configuram o crime ligado à pedofilia.
Em sequência, no universo de cerca de duzentas e setenta peças, encontrei aproximadamente sete que continham cena de nudez com exposição de genitália ou simulação de ato sexual, inclusive uma com prática zoerasta, mas todas de pessoas adultas.
Com a presença destas peças, vislumbrei a inadequação do acesso de crianças e adolescentes desacompanhados de pais ou responsáveis ou sem autorização judicial.
Certo é que, naquele momento, nada havia o que fazer, eis que o cancelamento da exposição impedia qualquer acesso público, consequentemente de crianças/adolescentes. Cessada estava a possível violação de direitos em tempo presente ou futuro.
Não há menor dúvida que, se encontrasse cena de pedofilia, não hesitaria em dar voz de prisão por infração aos arts. 241, 241-B e 241-C, do ECA, dependendo da situação constatada.
Também não me furtaria em recomendar, de plano, a separação das peças com cena imprópria para espaço com restrição de acesso de crianças/adolescentes desacompanhados dos pais ou responsáveis, caso a exposição ainda estivesse em curso.
No dia seguinte, deliberei pela instauração de Procedimento Administrativo para verificar a questão do acesso de crianças/adolescentes às cenas de simulação de ato sexual e de genitália, decidi pela expedição de recomendações ao expositor, escolas, secretarias Municipal de Saúde, Estadual de Educação e FASC, além de perquirir sobre uma dita “experiência sensorial” que teria sido realizada pelos participantes. Determinei ainda o registro fotográfico e em vídeo da mostra e requisitei avaliação do serviço biomédico para subsidiar as conclusões. Portanto, agi e tomei providências.
Em função da notícia de minha vistoria no local, passei a ser demandado pela imprensa, para a qual repassei minhas conclusões e as providências que tomaria, vez que já deliberadas. Alguns órgãos foram fiéis, outros destacaram apenas a resposta objetiva sobre a presença ou não de crime ligado à pedofilia, desconsiderando os demais aspectos.
Seguiram-se discussões nas redes sociais sobre as questões de moralidade, religiosidade, utilização de recursos públicos – incentivos fiscais -, ideologia, etc., assuntos e fatos que não dizem respeito às minhas atribuições e tampouco ao objeto específico da investigação que instaurei.
Não cabe a mim – e a ninguém por disposição Constitucional – censurar; não devo emitir opinião sobre o restante do acervo – o que aos demais é perfeitamente lícito –, sob pena de afetar minha necessária isenção; não me cabe apreciar outras eventuais práticas ilícitas de qualquer ordem, cabendo-me comunicar, em tempo oportuno, a quem tenha atribuição para examinar o fato, o que, se for o caso, farei.
Enfim, recebi a notícia, fui, colhi minhas primeiras impressões, arrecadei documentos, manifestei minhas conclusões preliminares - mas consistentes - e instaurei expediente dentro das minhas atribuições.
Em respeito aos Colegas e servidores do Ministério Público, que de alguma forma estão recebendo notícias e imagens por redes sociais - desde logo esclareço que algumas dessas não estão no acervo da exposição -, disponibilizo a Portaria de Instauração do Procedimento Administrativo, da qual levantei o sigilo, para que a examinem e, se entenderem pertinente, externem sugestões de qualificação da investigação. Faço isso porque entendo que devo consideração e esclarecimentos aos integrantes da minha Instituição.
Provavelmente não estaria envolvido na celeuma se aguardasse em gabinete o encaminhamento das notícias via protocolo do Ministério Público; requisitasse com prazo de 10 dias úteis a remessa do catálogo da exposição; depois, se me desse conta que poderia existir uma lista de escolas que compareceram ao evento, a requisitaria com 10 dias úteis; de posse desses documentos, designaria então uma audiência para trinta dias – em função da agenda, das prioridades e do tempo burocrático - para ouvir o curador da exposição e o diretor do espaço cultural; depois remeteria ao serviço biomédico para análise das consequências sobre o público infanto-juvenil; então, finalmente tomaria as providências que eventualmente se fizessem necessárias – como recomendações, TAC, ajuizamento de ação indenizatória, etc -, diria à imprensa sobre as conclusões... Opa! A exposição chegou ao seu final e as peças voltaram aos seus autores... Perdi a materialidade, perdi a prova, perdi de verificar se havia crime, deixei que crianças/adolescentes continuassem a entrar... Mas segui a forma e não me adjetivaram negativamente nas redes sociais... Ufa! Mas este não é o Promotor que sempre fui.
Podem, por derradeiro, ter a certeza que jamais pecarei pela omissão, pois o PROMOTOR FOI NA EXPOSIÇÃO. O Júlio, quando não for mais Promotor, talvez um dia se manifeste sobre ela.
* Promotor de Justiça titular da 11º PJIJ-PoA (atribuições na área de crimes sexuais contra crianças/adolescentes da competência da 6ª Vara Criminal do Foro Central de Porto Alegre) e substituto da 10º PIJI-PoA (atribuição no âmbito da proteção sexual).
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